Capítulo 4. Tipos de vieses em Estudos Observacionais

CAPÍTULO 4

 Tipos de Vieses em Estudos Observacionais

Rafaela da Silveira Pinto, Helena Polmann, Carla Massignan, Cristine Miron Stefani, Graziela De Luca Canto

 1. Introdução

Pesquisas clínicas em saúde podem ser divididas em dois grandes grupos, no que se refere à intencionalidade da intervenção, sendo os estudos experimentais e os estudos observacionais. Nos estudos experimentais (ou de intervenção), o pesquisador intencionalmente submete um grupo de pessoas representativo de uma população (amostra) a uma intervenção. Já os estudos observacionais, são aqueles em que os pesquisadores não interferem nos participantes da pesquisa,1,2 ou seja, a ação do pesquisador se resume a registrar, classificar, contabilizar e analisar estatisticamente os resultados.3

Ainda, os estudos observacionais podem ser categorizados como analíticos, quando apresentam um grupo de comparação ou controle, ou descritivos, sem um grupo comparador, dos quais o tipo mais simples é o relato do caso e, quando mais de um paciente é descrito, geralmente de forma consecutiva, caracteriza uma série de casos.

Nos estudos observacionais analíticos, cabe analisar se a unidade de avaliação é o indivíduo ou grupos de indivíduos. Se for um grupo de pessoas, são denominados ecológicos, caso seja o indivíduo, analisa-se a direção temporal do estudo. Se exposição e desfecho são aferidos em um mesmo momento, é denominado transversal e se começar com a exposição em uma amostra e acompanhar ao longo do tempo até a ocorrência do desfecho, é chamado estudo de coorte. Por outro lado, se o estudo analítico começar com o desfecho e procurar retrospectivamente, no passado, por uma exposição, é denominado caso-controle.1

A seguir, são conceituados os principais tipos de estudos observacionais, segundo a classificação disposta na Figura 2 do Capítulo 1.

2. Tipos de estudos observacionais

2.1 Estudos observacionais descritivos

Estudos descritivos são utilizados para descrever a frequência, a história natural e possíveis determinantes de uma condição, sendo que os resultados desses estudos mostram quantas pessoas desenvolveram certa doença ou condição ao longo do tempo, descrevem as características da doença e das pessoas acometidas e permitem gerar hipóteses acerca das possíveis causas da doença, as quais podem ser avaliadas, posteriormente, por meio de pesquisas mais rigorosas, como estudos observacionais analíticos.1

Relato de casos e série de casos são os exemplos clássicos desse tipo de estudo, diferindo-se pelo número de pessoas acompanhadas. Entende-se por relato de caso aqueles em que até três pacientes são descritos e por série de casos, mais de três.4,5 Cabe observar que a amostragem em uma série de casos não precisa ser consecutiva. A consecutividade aumenta a qualidade da série de casos, mas uma série não consecutiva também se caracteriza como tal.6

As vantagens e desvantagens desses tipos de estudo estão descritas no Quadro 1.

Quadro 1. Vantagens e desvantagens de estudos observacionais descritivos (relatos e séries de casos)

VANTAGENS DESVANTAGENS
  • Um único caso é suficiente para alertar a comunidade científica;
  • Observacional (não requer intervenção);
  • Educativo (uso na formação em saúde);
  • Fácil execução (não requer financiamento);
  • Identifica manifestações raras de doenças ou drogas.
  • Não há comparador (controle);
  • Difícil comparação entre diferentes casos;
  • Generalização limitada;
  • Viés de seleção;
  • Desfechos desconhecidos (sem acompanhamento).

Fonte: adaptado de Sayre et al.5

2.2. Estudos observacionais analíticos

Estudos observacionais analíticos são aqueles que apresentam grupo controle ou comparador. São classificados quanto à unidade de avaliação, se grupos de indivíduos ou indivíduos.1

2.2.1. Unidade de avaliação: grupos de indivíduos

2.2.1.1. Estudo ecológico

Estudo observacional analítico em que a unidade de análise é um grupo de indivíduos. Não existem informações sobre a doença/exposição nos indivíduos, mas sim no agregado populacional como um todo, bem como as medidas agregadas da exposição e da doença são comparadas. Dessa forma, deve-se evitar a possibilidade do viés ecológico, também denominado falácia ecológica, ou seja, considerar que uma associação existente nos agregados reflete a mesma associação em nível de indivíduos.7,8 Vantagens e desvantagens de estudos ecológicos estão descritas no Quadro 2.

Quadro 2. Vantagens e desvantagens de estudos observacionais ecológicos

VANTAGENS DESVANTAGENS
  • Éticos, baixo custo, simplicidade de condução e análise;
  • Permitem explicar efeitos contextuais sobre a prevalência da doença;
  • Úteis para avaliação de políticas, programas e intervenções em saúde.
  • Impossibilidade de inferir os resultados do agregado para indivíduos (falácia ecológica);
  • Sujeitos a fatores de confusão não modelados no nível de agregação do estudo.

Fonte: adaptado de Peres e Antunes.9

2.2.2. Unidade de avaliação: indivíduo

2.2.2.1. Estudo transversal

Também denominado seccional, é um tipo de estudo observacional que pode avaliar prevalência de determinado evento ou uma associação entre desfechos e exposições. Não avalia causalidade (causa-efeito), uma vez que todos os dados são coletados em um único momento, portanto, não é possível saber se a exposição antecede ou é consequência da doença/condição relacionada à saúde.1 Pode ser conduzido com a população inteira (censos), amostras representativas, não representativas ou amostras de conveniência. São estudos utilizados para se determinar a prevalência de uma doença ou condição e pode gerar hipóteses para investigações futuras com outros tipos de delineamentos.6 Vantagens e desvantagens dos estudos transversais estão descritas no Quadro 3.

Quadro 3. Vantagens e desvantagens de estudos observacionais transversais

VANTAGENS DESVANTAGENS
  • São rápidos e de baixo custo (como não há seguimento, menos recursos são necessários);
  • Melhor maneira de determinar a prevalência de doenças ou condições;
  • Permitem a identificação de associações que podem ser estudadas com mais rigor, usando outros delineamentos.
  • Não é possível estabelecer relação de causa e efeito (não permitem explicação para os achados);
  • Frequentemente, existem várias explicações plausíveis para a associação (sujeitos a fatores de confusão);
  • Não favorecem o estudo de condições raras (mesmo em grandes amostras, é possível que não sejam encontrados portadores da condição).

Fonte: adaptado de Mann.10

2.2.2.2. Estudo caso-controle

Estudo observacional que compara dois grupos, partindo do desfecho (doença ou condição) para a investigação da exposição (possível fator causal ou predisponente), ou seja, identifica os participantes pelo desfecho, no início da investigação, e busca sua exposição no passado. Os desfechos de interesse podem ser, por exemplo, submissão a um tipo específico de cirurgia, alguma complicação pós-procedimento ou uma doença ou condição. Posteriormente, os dados relativos à exposição a um fator de risco (ou vários) são coletados retrospectivamente, normalmente, por entrevista.

Uma vez que o desfecho é identificado e os indivíduos são categorizados como casos, selecionam-se os controles (indivíduos sem o desfecho, oriundos da mesma população). O ideal é que haja comparabilidade entre esses grupos, para isso, usa-se o pareamento, definido como o processo de seleção dos controles, para que sejam semelhantes aos casos em certas características, tais como idade, raça, sexo, condição socioeconômica, ocupação ou outras, de forma a minimizar possíveis fatores de confusão.2,7,11,12

Portanto, estudos caso-controle são, especialmente, úteis para desfechos raros ou que levam muito tempo para se desenvolver, como doenças cardiovasculares e câncer. Geralmente, requerem menos tempo, esforço e recursos do que os estudos de coorte, sendo que a maior dificuldade nesses estudos é escolher um grupo de controle apropriado, já que controles devem ser semelhantes aos casos em todos os aspectos importantes, exceto por não ter o desfecho em questão.1

Ademais, como estudos caso-controle funcionam de trás para frente (do desfecho para a exposição), e pensar nessa direção não é intuitivo, são comumente mal compreendidos e sua designação usada erroneamente para determinar estudos transversais comparados, por exemplo.1 Vantagens e desvantagens desse delineamento estão elencadas no Quadro 4.

Quadro 4. Vantagens e desvantagens de estudos observacionais caso-controle

VANTAGENS DESVANTAGENS
  • Relativamente rápidos (seleção de participantes após o surgimento da doença);
  • Custo mais baixo, em comparação aos estudos de coorte;
  • Eficientes para o estudo de doenças raras ou com longo período de latência;
  • Possibilidade de investigação simultânea de diferentes hipóteses etiológicas.
  • A seleção de um grupo de comparação apropriado pode ser difícil, assim, são sujeitos a viés de seleção (casos e controles diferirem sistematicamente);
  • Sujeitos a viés de memória (casos e controles podem diferir sistematicamente na capacidade de lembrar a exposição);
  • Taxas de doença em indivíduos expostos e não expostos não podem ser determinadas.

Fonte: adaptado de Mann.10

2.2.2.3. Estudo de coorte

Estudo observacional longitudinal (acompanhado ao longo do tempo), no qual, primeiro, identificam-se pessoas com a exposição ou evento de interesse, que são acompanhadas ao longo do tempo até que a doença ou desfecho de interesse ocorra. A exposição é identificada antes do desfecho e, dessa forma, os estudos de coorte têm uma estrutura temporal que permite avaliar a causalidade e, se bem conduzidos, podem fornecer evidências científicas mais robustas, permitindo a avaliação da história natural das doenças.

Em relação à temporalidade, o estudo pode ser prospectivo ou retrospectivo. No estudo de coorte prospectivo, o pesquisador conhece a condição de exposição dos participantes a determinado fator em estudo e os acompanha por um período de tempo, para observar a ocorrência do desfecho. Já no retrospectivo, colhem-se informações pregressas referentes à exposição (geralmente, em prontuários ou registros clínicos) e verifica-se a ocorrência do desfecho entre os participantes. Trata-se de uma investigação que se iniciou no momento em que a exposição ocorreu (no passado), mas que conserva o preceito básico dos estudos de coorte: a exposição precede o desfecho.2,11

O estudo de coorte permite o cálculo de taxas de incidência, riscos relativos e riscos atribuíveis. No entanto, para o estudo de eventos raros ou eventos que levam anos para se desenvolver, esse tipo de desenho de pesquisa pode ser lento para produzir resultados e, consequentemente, de alto custo.1 Vantagens e desvantagens dos estudos de coorte estão elencadas no Quadro 5.

Quadro 5. Vantagens e desvantagens de estudos observacionais de coorte

 VANTAGENS DESVANTAGENS
  • Viabilizam a investigação de fatores de risco (de forma ética, em relação aos ECR);
  • Permitem coletar dados sobre a sequência de eventos (história natural da doença), e, portanto, avaliar causalidade;
  • Vários desfechos, para uma determinada exposição, podem ser investigados;
  • Permitem investigar exposições raras;
  • É possível calcular taxas de doença em indivíduos expostos e não expostos ao longo do tempo (por exemplo, incidência, risco relativo).

 

  • Muitos participantes são necessários para estudar exposições raras;
  • Susceptíveis a viés de seleção;
  • Controle de viés de confusão complexo.

Estudo de coorte prospectivo

  • Alto custo;
  • Podem exigir longos períodos de acompanhamento;
  • Susceptíveis à perda de acompanhamento ou abandonos.

Estudo de coorte retrospectivo

  • Susceptíveis a viés de memória (viés de informação);
  • Menor controle sobre as variáveis (coleta não intencional).

Fonte: adaptado de Mann.10

3. Tipos de vieses em estudos observacionais

3.1. Viés de seleção

O viés de seleção ocorre quando há uma diferença sistemática entre os indivíduos selecionados para os grupos de exposição (coorte) ou desfecho (caso-controle) e para o controle, ou, ainda, se essas diferenças estiverem relacionadas a quem participa e quem não participa do estudo, podendo afetar a comparabilidade entre os grupos e a generalização, respectivamente.2,7,11

Existem várias situações em que esse tipo de viés pode ocorrer. Viés de amostragem, quando alguns indivíduos na população-alvo têm maior probabilidade de ser selecionados para inclusão do que outros, por exemplo, ao solicitar voluntários, pode ocorrer que aqueles que se voluntariem sejam os mais preocupados com sua saúde ou tenham características diferentes da população em geral, o que leva à impossibilidade de generalização dos resultados do estudo.2,7,11 Ou o chamado viés de associação, quando as pessoas que escolhem ser membros de um grupo – por exemplo, praticantes de corrida – podem diferir em aspectos importantes dos outros.13

Ainda, há o viés de seleção de não resposta, quando os não respondentes diferem dos respondentes. Por exemplo, fumantes têm menor probabilidade de responder questionários do que os não fumantes.13

3.1.1. Viés de seleção em estudos caso-controle

Os estudos caso-controle possuem propensão ao viés de seleção, causando a impossibilidade de comparação entre os grupos. Em estudos com esse delineamento, casos e controles devem ser retirados da mesma população, para que sejam representativos. O viés de seleção pode ocorrer quando os indivíduos selecionados como controles não são representativos da mesma população que produziu os casos.

Por razões logísticas, muitas vezes, os participantes são selecionados exclusivamente em hospitais ou clínicas, pela denominada amostra de conveniência. Esses, no entanto, podem não representar a população geral, levando a uma diminuição da validade externa. Já nos estudos caso-controle de base populacional, os controles selecionados no mesmo bairro em que os casos residem, por exemplo, podem ser uma escolha mais acertada do que selecionar casos de um hospital ou clínica. Todavia, o potencial de viés de seleção pode ainda ser minimizado, selecionando mais de um controle de fontes distintas para um mesmo caso.2,7,11

Dois tipos de viés de seleção associados a estudos caso-controle receberam epônimos: de Berkson e de Neyman. O viés de Berkson (também conhecido como viés da taxa de admissão) resulta de diferentes taxas de admissão hospitalar para casos e controles. Inicialmente, pensou-se que esse fenômeno era devido à presença de uma doença simultânea, enquanto, na realidade, o conhecimento da exposição de interesse pode levar a um aumento de visitas ao hospital. O de Neyman é um viés de incidência-prevalência e surge quando ocorre um intervalo de tempo entre a exposição e seleção dos participantes do estudo. É comum em estudos de doenças que são rapidamente fatais, transitórias ou subclínicas, criando um grupo de casos não representativo dos casos na comunidade.13

3.1.2. Viés de seleção em estudos de coorte

O viés de seleção pode ser menos problemático em estudos de coorte do que em estudos caso-controle, porque os indivíduos expostos e não expostos passam a ser acompanhados antes do desfecho ocorrer. No entanto, pode ser introduzido quando o acompanhamento acontece de forma diferente entre as categorias de exposição. Por exemplo, pode ser mais fácil acompanhar indivíduos expostos que estudam na mesma escola do que controles não expostos selecionados da comunidade (viés por perda de acompanhamento). Por outro lado, pode ser minimizado por meio do acompanhamento igualmente rigoroso para todos os grupos em estudo.2,7,11

3.2. Viés de informação

O viés de informação, também conhecido como viés de observação, classificação ou medição, resulta da determinação incorreta da exposição ou do desfecho, ou de ambos. Em um estudo de coorte, dados para os desfechos devem ser obtidos da mesma forma para os expostos e não expostos. Em um estudo caso-controle, as informações sobre a exposição devem ser coletadas da mesma forma para casos e controles.13

Portanto, o viés de informação resulta de diferenças sistemáticas na forma como os dados sobre a exposição ou o desfecho foram obtidos dos grupos de estudo ou, ainda, pode ser proveniente de erros de medição (em decorrência de instrumentos descalibrados, por exemplo).

3.2.1. Viés de observação (também chamado de viés de suspeição da exposição ou viés do observador)

Pode acontecer quando o entrevistador ou examinador tem conhecimento da hipótese sob investigação, sobre a exposição de um participante ou do estado da doença dele, ou seja, o processo de obtenção das informações pelo investigador é diferente se o informante é um caso ou um controle. Já o preconceito do entrevistador ocorre quando este faz perguntas importantes de forma a, sistematicamente, direcionar as respostas dadas pelos entrevistados.2,11,14

Formas de minimizar o viés do observador/entrevistador:7,8,13

  • Sempre que possível, cegar os observadores para a exposição (coorte), o desfecho (caso-controle) e a hipótese sob investigação;
  • Desenvolver protocolo para coleta, medição e interpretação de informações;
  • Utilizar questionários padronizados; e
  • Treinar os entrevistadores para aplicação do instrumento.

3.2.2. Viés de memória (recordação ou recuperação)

Em estudos caso-controle, os dados sobre a exposição são coletados retrospectivamente e dependem, em grande parte, da capacidade do participante de recordar, com precisão, exposições anteriores, a fim de gerar dados de qualidade. Assim, esse tipo de viés pode ocorrer quando as informações fornecidas sobre a exposição diferem entre os casos e controles. Por exemplo, mães que tiveram bebês com anomalias (caso) podem relatar sua experiência de exposição com muito mais detalhes do que as mães de bebês sem tais condições (controle). Portanto, o viés de memória pode subestimar ou superestimar a associação entre a exposição e o desfecho.2,7,11,14

Para minimizar o viés de memória, as seguintes precauções devem ser adotadas:2,7,11,14

  • Cegar os participantes para a hipótese do estudo;
  • Incentivar, igualmente, casos e controles para recordar eventos passados; e
  • Entrevistar casos e controles em locais semelhantes e com o uso do mesmo questionário.

3.2.3. Viés de resposta (de prevaricação, de falsa-resposta ou de não aceitação)

Ocorre quando os participantes das pesquisas tendem a responder de acordo com o que pensam que o pesquisador deseja ouvir, por exemplo, relatando com mais ênfase comportamentos saudáveis ou omitindo hábitos nocivos.2,7,11,14

3.2.4. Viés de desempenho

Acontece quando a equipe de pesquisa ou os próprios participantes modificam seu comportamento/respostas quando estão cientes das alocações nos grupos. Um exemplo seria um estudo de coorte que acompanha fumantes no grupo exposto e esses deixam de fumar durante o período de acompanhamento, pois essa mudança de comportamento pode comprometer os resultados do estudo.2,7,11,14

3.2.5. Viés de detecção (ou de aferição)

Ocorre quando as informações do desfecho são coletadas de forma diferente entre os grupos, por questões relacionadas aos aferidores do desfecho ou aos instrumentos utilizados. Um termo utilizado é “polarização do instrumento”, que se refere a quando um instrumento de medição calibrado de forma inadequada sistematicamente super/subestima a medição, por exemplo, uma balança desregulada. O cegamento dos avaliadores de desfecho e o uso de instrumentos calibrados podem reduzir o risco desse viés ocorrer.2,7,11,14

3.3. Viés de confusão

O viés de confusão ocorre quando a presença de uma ou mais variáveis está relacionada tanto ao desfecho quanto à exposição. Ou seja, quando um pesquisador tenta relacionar uma exposição a um desfecho, mas, na realidade, mede o efeito de uma terceira variável, denominada fator de confusão, que está associada à exposição e afeta o desfecho, mas não é um elo intermediário na cadeia de causalidade entre ambos. Assim, parte do efeito observado é decorrente da presença dessa terceira variável.13

Para ser considerada um fator de confusão, a variável deve possuir as seguintes características:15

  • Estar associada à exposição principal em foco;
  • Independentemente da exposição, ser também um fator de risco para a doença, ou seja, uma das causas do desfecho em estudo; e
  • Não constituir elo na cadeia de causalidade entre exposição e desfecho.

Como demonstrado na Figura 1, em um estudo sobre exposição A ser fator de risco da doença B, diz-se que um terceiro fator, X, é um fator de confusão se o seguinte for verdadeiro:

  • O fator X for um fator de risco conhecido para doença B;
  • O fator X estiver associado ao fator A, mas a doença B não resultar da exposição ao fator A.

Figura 1. Fator de confusão (X) em cadeia de causalidade entre fator A (exposição) e doença B (desfecho)

X – Fator de Confusão

A – Exposição

B – Desfecho (doença)

Fonte: elaborada pelos autores.

Para exemplificar a Figura 1, pode-se usar as variáveis tabagismo (X) e consumo de álcool (A) para o desfecho câncer de pulmão (B). O tabagismo está relacionado ao consumo de álcool e ao câncer de pulmão, porém, o consumo de álcool não está relacionado diretamente ao câncer de pulmão. Se uma pessoa fuma mais e, consequentemente, tem câncer de pulmão, mas, ao mesmo tempo, quando fuma, bebe mais, os pesquisadores poderiam chegar à conclusão errônea de que o consumo de álcool (A) está relacionado ao câncer de pulmão (B), sendo que, na realidade, a associação está confundida pelo tabagismo (X).

3.3.1. Efeitos da confusão

O viés de confusão pode resultar em três situações distintas:11,14

  • Associação observada quando nenhuma associação real existe;
  • Nenhuma associação observada quando existe associação verdadeira; e
  • Subestimativa da associação (confusão negativa) ou uma superestimativa da associação (confusão positiva).

3.3.2. Estratégias para controle do viés de confusão

O viés de confusão pode ser minimizado utilizando-se duas estratégias: preventiva (na fase de desenho de estudo) e analítica (na fase de análise dos dados).11,13,14

As estratégias preventivas incluem:

  • Restrição: participação no estudo limitada a indivíduos semelhantes em relação ao fator de confusão. Por exemplo, se a participação em um estudo for restrita apenas a não fumantes, qualquer efeito potencial de confusão do tabagismo será eliminado. Uma desvantagem da restrição é que a generalização dos resultados do estudo para a população em geral pode ficar prejudicada, caso o grupo de estudo seja muito homogêneo.
  • Pareamento: envolve a seleção de controles, de modo que a distribuição de potenciais fatores de confusão (por exemplo, idade ou tabagismo) seja o mais semelhante possível àquela entre os casos.

As estratégias analíticas contemplam:

  • Estratificação: permite que a associação entre a exposição e o resultado seja examinada em diferentes estratos da variável de confusão, por exemplo, por idade ou sexo. Uma desvantagem desse método é que, quanto mais a amostra original for estratificada, menor será cada estrato e, consequentemente, o poder de detectar associações será reduzido.
  • Análise multivariada: a modelagem estatística (por exemplo, análise de regressão multivariada) é a estratégia mais utilizada para minimizar a confusão, pois permite o controle de mais de um fator de confusão ao mesmo tempo e a interpretação do efeito de cada fator individualmente.

4. Viés, acaso ou verdade?

Ainda que os resultados de um estudo observacional não possam ser explicados com base nos vieses de seleção, informação ou confusão, talvez o acaso possa explicá-los. A razão para procurar por vieses antes do acaso é que vieses podem facilmente causar resultados significativos, embora falsos.13

Quando as diferenças estatísticas emergem de estudos observacionais, o próximo passo é julgar que tipo de associação existe, já que associações estatísticas não implicam necessariamente relações causais. Há três tipos possíveis de associação: espúrias, indiretas e causais. As associações espúrias são o resultado dos vieses de seleção, de informação e do acaso. Já associações indiretas resultam do viés de confusão e são reais, mas não causais.13 Por fim, associações causais são relações verdadeiras de causa e efeito e as que os estudos observacionais procuram comprovar.

O estabelecimento de associações causais, com relação verdadeira de causa e efeito, pode ser bastante complexo. A única “cláusula pétrea” nesse processo é a temporalidade: a causa deve anteceder o efeito. No entanto, em muitos estudos, especialmente de doenças crônicas, definir causalidade é desafiador. Um sinal de causalidade pode ser a ocorrência de associações fortes em estudos observacionais (quando o risco relativo for >3 em estudos de coorte ou a razão de chances >4 em estudos caso-controle), já que grandes quantidades de vieses seriam necessárias para produzir tais associações fortes. Por fim, a observação consistente de uma associação em diferentes populações por meio de diferentes desenhos de estudo também pode indicar um efeito real.13

Grimes e Schulz13 sugerem que a sequência de avaliação disposta no Quadro 6 seja seguida, quando da análise crítica de estudos observacionais:

Quadro 6. O que analisar em estudos observacionais

Existe viés de seleção?

  • Em um estudo de coorte, os participantes dos grupos expostos e não expostos são semelhantes em todos os aspectos importantes, exceto quanto à exposição?
  • Em um estudo caso-controle, os casos e controles são semelhantes em todos os aspectos importantes, exceto quanto à condição em estudo (desfecho)?

Existe viés de informação?

  • Em um estudo de coorte, as informações sobre o desfecho foram obtidas da mesma forma para os expostos e não expostos?
  • Em um estudo caso-controle, as informações sobre a exposição foram obtidas da mesma forma para casos e controles?

Existe viés de confusão?

  • Os resultados poderiam ser explicados pela presença de um outro fator – por exemplo, idade, tabagismo, comportamento sexual, dieta – associado à exposição e ao desfecho, mas não diretamente envolvido na via causal?

Se os resultados não puderem ser explicados por esses três vieses, poderiam ser obra do acaso?

  • Quais são o risco relativo ou razão de chances (odds ratio) e intervalo de confiança a 95%?
  • A diferença é estatisticamente significativa?
  • (Se a diferença não for significativa) o estudo tem poder adequado para encontrar uma diferença clinicamente importante?

Se os resultados ainda assim não puderem ser explicados, então (e somente então), os resultados podem ser reais e dignos de nota.

Fonte: adaptado de Grimes e Schulz.13

5. Considerações finais

A principal força dos estudos observacionais é a sua maior proximidade com “situações da vida real”, uma vez que os ECR têm critérios de inclusão e protocolos mais rígidos que podem não refletir condições reais. Por definição, estudos observacionais propiciam maior heterogeneidade de condições e intervenções e populações de pacientes que estão mais próximas da prática clínica, sendo fundamentais para a geração de novas hipóteses e comprovação da validade externa de ECR já realizados.16

Portanto, estudos observacionais seguem como delineamentos válidos para investigação de fatores de risco, preditores e efeitos adversos raros, para os quais ECR não são adequados. Nessa lógica, embora mais susceptíveis a vieses, estudos observacionais são cruciais para responder a diversas perguntas clínicas e serão objeto (muitas vezes, como única fonte de informação) de Revisões Sistemáticas.

 

Referências

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