Capítulo 17. Incorporação do risco de viés nas conclusões das Revisões Sistemáticas

CAPÍTULO 17

Incorporação do Risco de Viés nas Conclusões das Revisões Sistemáticas

Carlos Flores-Mir, Carla Massignan, Cristine Miron Stefani, Graziela De Luca Canto

A interpretação da evidência científica persiste sendo um desafio para os profissionais da saúde nos tempos atuais. Fontes de informação que não são baseadas em evidências científicas, como opiniões de especialistas, eventos patrocinados pela indústria e informações de mídias sociais, parecem ter mais força do que as informações provenientes de artigos científicos.

A ânsia por uma resposta clínica rápida, muitas vezes, leva os clínicos – sempre sobrecarregados com trabalho e com pouco tempo livre disponível – à tentação de passar os olhos rapidamente pelos títulos dos artigos, acessando a literatura de forma superficial, lendo apenas os resumos sem maior aprofundamento, o que não seria tão grave, se as conclusões dos artigos científicos sempre fossem baseadas na real interpretação dos seus resultados. Entretanto, em alguns casos, os autores exageram na importância da sua pesquisa, sendo muito incisivos em suas conclusões, que, por vezes, não são baseadas em resultados reais, mas em suposições.1 Essa combinação de profissionais da saúde sedentos por respostas rápidas com artigos científicos com relatos imprecisos é uma receita para o desastre na prática clínica.

O descompasso se deve, em boa parte, ao fato de a formação profissional em saúde, geralmente, não incluir o desenvolvimento de habilidades sólidas para análise crítica de literatura científica. Mesmo quando essa competência é adquirida durante a graduação ou pós-graduação, sua aplicação prática requer tempo adicional para obter as fontes originais das informações e para revisar e interpretar detalhes metodológicos, às vezes, bastante complexos. Além disso, com o tempo despendido sempre há um custo associado, o que gera uma reflexão sobre o custo-benefício da leitura crítica de artigos científicos.

Talvez por isso, desde a década de 1990, quando David Sakett introduziu o conceito de Medicina Baseada em Evidências2, as Revisões Sistemáticas (RS) vêm se consolidando como a principal fonte de informação para profissionais de saúde na busca das melhores evidências para apoiar o processo de tomada de decisão clínica. Atualmente, há mais de 350 mil RS publicadas na área da saúde, considerando apenas a base de dados PubMed. Com essa quantidade de artigos publicados, como o clínico pode decidir em qual informação confiar?

Por um lado, a mensagem transmitida é que as RS são sínteses baseadas em evidências, permitindo aos clínicos economizarem tempo, pois alguém já fez o trabalho de base e apontou a direção a seguir. Por outro, existem muitas RS, relativamente semelhantes, com conclusões conflitantes. A sensação é que há mais RS publicadas do que as pesquisas primárias necessárias para as sustentar. No entanto, partindo da premissa de que as conclusões destas nortearão a prática clínica, a responsabilidade dos pesquisadores com o rigor metodológico aumenta consideravelmente. Desse modo, a qualidade dos estudos incluídos em uma RS não pode ser ignorada, devendo ser explorada nas diferentes partes constituintes do relato do estudo.

Segundo o PRISMA 20203, a qualidade metodológica dos estudos incluídos nas RS, preferencialmente determinada por meio da análise do risco de viés, deve ser contemplada desde o resumo (na descrição da metodologia e limitações do estudo), bem como a forma de análise descrita em detalhes na metodologia, o resultado da análise apresentado e as implicações para os achados discutidas e incorporadas às conclusões das RS.3 Dessa forma, contribui-se para reduzir a incerteza nos achados das RS. Não que a incerteza clínica gere qualquer estranheza. A incerteza é uma constante para todos os profissionais de saúde, já que, na maioria das vezes, não se sabe com 100% de certeza como o paciente responderá (seja a uma técnica cirúrgica, a um medicamento ou a evolução de sua doença). No entanto, no contexto das conclusões de um artigo, a certeza da evidência “… reflete a extensão de nossa confiança de que as estimativas de um efeito são adequadas para apoiar uma decisão ou recomendação específica”.4 Isso significa que, de maneira geral, considerando todos os vieses, os autores têm uma certeza específica de que sua conclusão é válida.

Ao longo dos anos, dezenas de ferramentas de avaliação foram publicadas, com o intuito de definir o nível da evidência, criando confusão, inconsistências e se revelando inúteis para clínicos e pacientes que tomam decisões em saúde.5,6 Assim, para resolver esse problema e desenvolver um processo padrão, transparente e sensato para avaliar a certeza na evidência e classificar a força das recomendações, lançando mais luz sobre decisões clínicas, foi criada a abordagem GRADE (Grading of Recommendations, Assessment, Development and Evaluation – Classificação de Recomendações, Apreciação, Desenvolvimento e Avaliação).7

A abordagem GRADE incorpora cinco domínios que podem indicar a certeza dos autores da RS quanto à evidência encontrada na literatura em resposta à pergunta focada formulada. Dentre os domínios avaliados pela abordagem GRADE, o risco de viés dos estudos incluídos é considerado, e, portanto, incorporado na avaliação geral. Dessa forma, junto aos outros quatro domínios avaliados (inconsistência, evidência indireta, imprecisão e viés de publicação), é possível indicar, nas conclusões da RS, com relativa segurança, a certeza que se tem na evidência gerada8.

Por meio da abordagem GRADE, a certeza nas evidências indica a extensão da confiança de que as estimativas de efeito encontradas refletem a realidade. Em outras palavras, quão confiantes podemos ficar de que a estimativa do efeito relatada na RS é semelhante ao provável efeito real de uma intervenção ou exposição. Quando o nível da certeza é alto ou moderado, confia-se que o resultado da intervenção é suportado pela literatura o suficiente para aplicação clínica direta. No entanto, quando é baixo ou muito baixo, cuidado extra deve ser usado ao aplicar aquele resultado às decisões de tratamento, porque o observado pode ser bem diferente do resultado na vida real6-8. Assim, de maneira semelhante às luzes indicativas de um semáforo de trânsito, se a conclusão estiver em verde, o clínico pode aplicá-la com confiança, se estiver em amarelo, pode-se seguir, mas considerando alguns fatores antes, pois há algum risco envolvido. Finalmente, se for vermelha, não se deve fazê-lo. O vermelho em uma conclusão de RS indica que as evidências não favorecem nem negam a conclusão, havendo ainda muitas incógnitas envolvidas.

Contudo, na vida real, uma medida clínica precisa ser adotada, então, na ausência de evidências sólidas, o bom senso deve prevalecer. Especialmente diante da situação em que não se encontra qualquer evidência disponível na literatura acerca da questão clínica em análise e, ainda assim, uma decisão precisa ser tomada. Em qualquer caso, os benefícios percebidos devem sempre superar os riscos potenciais.

Portanto, no papel de profissionais de saúde e pesquisadores, devemos sempre incorporar os resultados da análise do risco de viés nas conclusões das RS, preferencialmente por meio da abordagem GRADE, assegurando transparência e lisura ao relato e contribuindo efetivamente para a tomada de decisão clínica.

Por fim, como pesquisadores e profissionais de saúde, esperamos que este livro tenha contribuído para elucidar aspectos essenciais da etapa de análise do risco de viés dos estudos incluídos em RS. Desejamos que todos os leitores compreendam e apliquem esses conhecimentos aos seus trabalhos futuros, favorecendo a consolidação e aprimoramento constante da prática baseada em evidências.

 

Referências

  1. Boutron I, Dutton S, Ravaud P, Altman DG. Reporting and interpretation of randomized controlled trials with statistically nonsignificant results for primary outcomes. JAMA [Internet]. 2010 May [cited 2021 Jul 31];303(20):2058-64. Available from: https://doi.org/10.1001/jama.2010.651.
  2. Sackett DL, Rosenberg WM, Gray JA, Haynes RB, Richardson WS. Evidence based medicine: what it is and what it isn’t. Clin Orthop Relat Res. 2007 Feb;455:3-5.
  3. Page M J, McKenzie J E, Bossuyt P M, Boutron I, Hoffmann T C, Mulrow C D et al. The PRISMA 2020 statement: an updated guideline for reporting systematic reviews. BMJ [Internet]. 2021 Mar [cited 2021 Aug 05]; 372:n71. Available from: https://doi.org/10.1136/bmj.n71
  4. Guyatt GH, Oxman AD, Montori V, et al. GRADE guidelines: 5. Rating the quality of evidence–publication bias. J Clin Epidemiol [Internet]. 2011 Dec [cited 2021 Aug 05];64(12):1277-82. Available from: https://doi.org/10.1016/j.jclinepi.2011.01.011
  5. Atkins D, Eccles M, Flottorp S, et al. Systems for grading the quality of evidence and the strength of recommendations I: critical appraisal of existing approaches The GRADE Working Group. BMC Health Serv Res [Internet]. 2004 Dec [cited 2021 Aug 05];4(1):38. Available from: https://doi.org/10.1186/1472-6963-4-38
  6. Atkins D, Best D, Briss PA, et al. Grading quality of evidence and strength of recommendations. BMJ [Internet]. 2004 Jun [cited 2021 Aug 05];328(7454):1490. Available from: https://doi.org/10.1136/bmj.328.7454.1490
  7. Hultcrantz M, Rind D, Akl EA, et al. The GRADE Working Group clarifies the construct of certainty of evidence. J Clin Epidemiol [Internet]. 2017 Jul [cited 2021 Aug 05];87:4-13. Available from: https://doi.org/10.1016/j.jclinepi.2017.05.006
  8. Guyatt GH, Oxman AD, Kunz R, et al. What is “quality of evidence” and why is it important to clinicians? BMJ [Internet]. 2008 May [cited 2021 Aug 05];336(7651):995-8. Available from: https://doi.org/10.1136/bmj.39490.551019.be